quarta-feira, 21 de maio de 2008

Nietzsche: entre a gravidade do Trágico e a leveza do Cômico

Cláudio R. Duarte

Nietzsche é modulado pela passagem constante do Trágico ao Cômico: pelo espírito grave vivendo e glosando situações terríveis (o destino da cultura, a impotência social dos "fortes") ao espírito leve do cômico; ou ainda, do espírito martelador e impassível, duro consigo e com outros (de onde se retira vários dos temas aristocráticos: pathos de distância, hierarquização, anticompaixão etc.), ao espírito da ironia fina, do ceticismo, da dança e da música. O humor é um recurso constante de Nietzsche, principalmente no período que leva de A Gaia Ciência à última fase, apesar de que também é o momento em que ele endurece ainda mais, entrando na fase nomeada do "Grande Não" leonino. Se desenvolvermos esse esquema ele talvez nos leve a um tema fundamental mas pouco conhecido de Nietzsche: o do questionamento da vontade de verdade e dos limites da vontade de domínio nobre ou escrava. Com o que o mais alto grau da potência é alcançada artisticamente, na criação e doação de sentido, ou naquilo que Deleuze nomeu a "potência do falso" como criadora de "mundos". E aí Nietzsche parece-me que avança do trágico ao IRÔNICO E AO CÔMICO. Por isso me lembra outro grande psicólogo, só que nosso conterrâneo: Machado de Assis. O "homem revoltado" de Nietzsche é, nos melhores momentos, muito mais o cético ironista e o "bufão", como ele diz em Ecce Homo, do que o Aristocrata aguerrido, impassível e cruel consigo e com os outros. Daí o quixotismo involuntário dessa filosofia, num mundo nobre socialmente em decadência, resta o humor e a potência da máscara para transfigurar uma situação trágica de mudança e perda de horizontes.
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Vamos exemplificar e problematizar um pouco isso tudo que disse, com um aforisma pouco lembrado: Origem do Cõmico, em Humano Demasiado Humano § 169:"Quando se considera que por centenas de milhares de anos o homem foi um animal extremamente sujeito ao temor, e que qualquer coisa repentina ou inesperada o fazia preparar-se para a luta, e talvez para a morte, e que mesmo depois, nas relações sociais, toda a segurança repousava sobre o esperado, sobre o tradicional no pensar e no agir, então não deve nos surpreender que, diante de tudo o que seja repentino e inesperado em palavras e ação, quando sobrevém sem perigo ou dano, o homem se desafogue e passe ao oposto do temor: o ser encolhido e trêmulo de medo se ergue e se expande - o homem ri. A isso, a essa passagem da angústia momentânea à alegria efêmera, chamamos de cômico. No fenômeno do trágico, por outro lado, o homem passa rapidamente de uma grande e duradoura alegria para um grande medo; mas, como entre os mortais essa grande e duradoura alegria é muito mais rara que as ocasiões de angústia, há no mundo muito mais comicidade do que tragédia. rimos com muito mais freqüência do que ficamos abalados."
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Olá, boa observação Karina. Creio que no Nascimento da Tragédia, Nietzsche ainda se lamenta da perda do mítico e do trágico com Eurípides e o triunfo do "homem teórico" socrático e democrático - mas ainda podia sonhar com um Renascimento do trágico no Espírito da Música de Wagner (e com as correspondências materiais, pouco observadas pelos idealistas, de um Estado Prussiano que se armava até os dentes). Em lugar da tragédia, vinha a "nova comédia ática" (NT §11), e com ela, a entrada do público no palco, "o instante, o chiste, a irreflexão", "a dialética otimista", a chegada da mentalidade do escravo ao poder (ibid.). O que ele vê como uma perda, um grande dano. Vê, p.ex., com maus olhos o triunfo dos "sardônicos Lucianos da Antigüidade" (NT, §10) - referindo-se a Luciano de Samósata e à tradição da sátira menipéia, muito apreciada, aliás, por Machado de Assis (que usou tal tradição, que tem relação com o caráter carnavalesco segundo Bakhtin!, no Memórias Póstumas de Brás Cubas!). O que mudou então ? Com o passar do tempo, creio que o nobre Nietzsche foi se deparando cada vez mais - como um novo Quixote em tempos modernos - com a inevitabilidade do universo burguês, secularizado e democrático, mas sem o sumiço de seu caráter de luta e violência (Humano demasiado Humano p.ex., §441 e 443, para citar alguns pequenos exemplos laterias). Assim, não pode assumir a dialética otimista, mas também não pode deixar de atinar que o caminho do niilismo e da perda de todas as autoridades e hierarquias antigas já não tem volta e tudo isso vira fantasia carnavalesca (ABM 223). Daí a apologia da máscara. Não é daí que surgiram, por exemplo, vários de seus temas futuros, como aqueles relacionados à crítica do "espírito de gravidade", a crítica da "vontade de verdade" e a necessidade do "esquecimento ativo" do passado? E assim Nietzsche consegue a meu ver, nesses momentos em que afirma a ironia e o cômico (que tem relações com Sócrates, aliás), realmente abrir uma brecha em seu projeto aristocrático para algo além.
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Da crítica do espírito de peso no Zaratustra
Em "Do espírito de gravidade (ou de peso), §1", o Zaratustra diz-nos:"Minha linguagem é a do povo: de modo por demais grosseiro e sincero falo eu, para o gosto dos delicados. E mais estranha ainda soa minha palavra aos ouvidos de todos os plumitivos e escrevinhadores"Estranho ou não ? Não, se considerarmos que ele está reatando aqui com as raízes populares do cômico, há muito soterradas. E na seqüência:"Somente o homem é um pesado fardo para si mesmo ! E isso procede de que carrega às costas demasiadas coisas estranhas. Tal como o camelo, ajoelha-se logo e deixa que o carreguem bem. // Especialmente o HOMEM FORTE, com espírito de suportação, ao qual inere o respeito: de demasiadas palavras e valores estranhos e pesados carrega ele mesmo suas costas - e, então, a vida parece-lhe um deserto!"(...) Em verdade, também não gosto daqueles para os quais todas as coisas são boas e este é o melhor dos mundos. A esses chamo onisatisfeitos. (...)Infelizes chamo todos aqueles que têm somente uma escolha: tornar-se animais maus ou malvados domadores de animais; não construiria no meio deles uma choupana para mim // Infelizes chamo, ainda, os que devem sempre esperar - esses repugnam ao meu gosto: todos esses aduaneiros e merceeiros e reis e demais guardiães de países e lojas" (§ 2).Estranhos trechos, novamente, se considerarmos que o "homem forte" diria "sim" a tudo, e seria algo próximo ao animal feroz ou ao domador de animais. Ou ainda, essa crítica do rei e dos militares (na mesma esteira: Das Novas e velhas tábuas, §12), quase sempre elogiados por N. Mas aí não é justamente uma crítica autoreflexiva da nobreza que está aflorando? É por isso, talvez, que é só no Zaratustra que encontramos uma clara crítica de valores nobres (e não só dos escravos), com um esboço de transvaloração dos valores aristocráticos. Coisa que acho que não se repetiria mais, mesmo na comicidade de Além de Bem e Mal (cujo capítulo sobre "O que é nobre?" é, malgré lui, uma afirmação de um grande espírito de peso).
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De onde vem o humor e a ironia em Nietzsche ?
O que o Edivan sugere é que os tipos nobre e escravo são tipos-ideais. Pode ser. Em todo caso, os intérpretes de Weber/Simmel vêem em N. a fonte desses tipos ideais da escola alemã de sociologia, embora as fontes fundamentais talvez sejam principalmente Kant e Dilthey. Agora, Dioniso é o deus trágico e da alegria, segundo o Leandro, o que já resolveria toda a questão, de saída, já no Nascimento da Tragédia. Não creio. Pois aí é que acho que entramos num problema complicado (que abordei no outro tópico, chamado Nietzsche com/contra a religião). No NT (§ 10 e 11) ele vê, com Ésquilo/nova comédia ateniense, o fim daquele sentimento de "gravidade" e peso das situações, que as tragédias de Sófocles e Ésquilo instauram. Não basta, assim, voltar ao dionisismo, nem à tragédia. Acho que foi preciso também tresvalorá-los, ou filtrá-los, e, sobretudo reconstrui-los. Jean Pierre Vernant considera o dionisismo nietzscheano uma invenção, sem grandes relações com a religião dionisíaca efetiva, constatável nos documentos históricos (religião típica de mulheres e escravos, p.ex.). O conceito de dionisismo é muito mais um tipo conceitual que um tipo histórico-concreto.Muitas tragédias áticas geralmente têm desfecho otimista, segundo Alban Lesky (A tragédia grega). Por que o otimismo? Talvez porque restabelecem a ordem social hierárquica de sempre - nobres, mulheres, crianças, escravos, mercadores e estrangeiros - o dionisismo, como expressão da violência coletiva e a morte de um bode expiatório - se há algo dele na tragédia - está sempre a favor da Ordem. Há algo disso em Nietzsche, claro, que adoraria restabelecer uma hierarquia natural dos seres segundo sua potência.Ora, se há realmente essa tresvaloração dos valores nobres em Nietzsche, se há superação do espírito de gravidade, parece-me haver também uma ultrapassagem do dionisismo antigo, embora Nietzsche não deixe isso aparecer tão claro. Só por isso, também, os "homens superiores" são ponte: só a nova nobreza a ser produzida está realmente além-do-homem.
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(discussões de orkut- maio/2008)

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