terça-feira, 17 de setembro de 2013

Notinha sobre Pollock - ensaio completo em SINAL DE MENOS #9 ON LINE


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DE UM PONTO DE VISTA CRÍTICO, o “devir-nômade” de Pollock esconderia em seu cerne a condição de um miserável devir-proletário, a posição social de instrumento/objeto do gozo do Capital, e que nada ganha em ser filosoficamente estetizada e inocentada.[1] Essa posição aparece dialetizada o mais literalmente possível num desenho de Pollock chamado War, de 1947.




(Fig.  Pollock, War, 1947, 52.4 x 66 cm. Tinta e lápis coloridos s/ papel.)

 

Embora pouco comentado, nele pode-se ver em ato a transição do concreto ao abstrato da produção pollockiana na massa de matéria acumulada ao centro. Ao futuramente hipostasiar as técnicas do all-over e do dripping, fechando virtualmente todos os poros e constituindo massas puramente formais-informais, Pollock as inutiliza como processo criador e construtivo. Tal qual no capitalismo, as forças produtivas invertem-se em forças automatizadas, virtualmente inúteis, como a arte, e principalmente destrutivas. As figuras inúteis se acumulam até o céu, a arte aparece como vão dispêndio de material. O posterior bloqueio da objetivação e da expressão do eu ou do espaço de representação vivido passa a expressar dolorosamente a ruína do representado. O artista revela a si e à própria sociedade como sujeito-sujeitado à substância do trabalho abstrato, reduzido ao puro gesto mecânico, pronto a ser deslocado de lá para cá a soldo do capital, no limite convertível numa massa descartável em campo de batalha. Exatamente isto em War: a conversão do vivo em morto ou em massa amorfa. Um homem e um boi sangrando são aqui lançados numa pilha de escombros putrefatos; outro ser é crucificado; nenhuma saída à vista. Em certo sentido, uma imagem dialética do processo de “proletarização do mundo”: a redução prática das qualidades naturais e humanas à pura substância de valor ou de corpos extermináveis pelo estado de exceção mundial na era atômica que então se consolidava. É assim que se pode retomar o aspecto sensível em sua obra.

(SINAL DE MENOS # 9, on line: www.sinaldemenos.org

[1] Deleuze & Guattari, op. cit., vol. 5, p. 57-9. Os filósofos estetizam o devir-proletário como uma espécie de benção: o “devir-nômade”, o “devir-animal”, o “devir-louco” e outros devires nietzcheanos modernos “inocentes”.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

UM CONCEITO MATERIALISTA DE FORMA
(rascunhos circulares sobre a questão da forma artística)

CLAUDIO R. DUARTE

O grande problema dos críticos formalistas é reduzir a forma literária a aspectos fragmentários do estético. Uma noção "boboca" de forma. Para alguns, nas questões de forma, cabem apenas discussões sobre gênero literário, tipos de personagens, formas retóricas, foco narrativo etc. A forma literária é isso, e muito mais que isso, segundo Roberto Schwarz ou Antonio Candido. Forma é conteúdo, sem separação, a não ser analítica. Este conteúdo é imanente à obra, mas um conteúdo histórico determinado. Ela é a sedimentação de um conteúdo histórico, ele mesmo formado. A forma literária machadiana é, segundo mostra Schwarz, a mímese construtiva de uma forma histórica externa. Ela não simplesmente a representa, mas a representando também pode criticá-la. Traços formais como o do narrador volúvel, o da paródia, o das intertextualidades ou da carnavalização das situações e personagens, o da alegoria, etc. só podem ser compreendidos em Machado de Assis tendo essa noção ampliada de forma. A forma machadiana não é gratuita, mas historicamente determinada. Somente esse tipo de olhar materialista da literatura consegue revelar todas as virtualidades da forma, descobrindo-lhe suas camadas de sentido determinadas, deixando as generalidades estetizantes para os ingênuos.
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A dialética foi uma "palavra mágica" muito mal empregada em questões de análise literária e artística em geral. Lá onde se vê determinismo das forças produtivas, reflexo da base, trata-se de ver condicionamento recíproco, diálogo entre as partes de um todo, unidade do diverso, movimento das partes, reverso no seu contrário etc. Certamente poucos aprenderam isso na "coisa mesma". Marx e Adorno são mestres nisso. Schwarz, Candido, Ruy Fausto e Arantes entre nós. Não adianta ficar especulando muito, voltemos a Machado. Como não perceber que a forma do romance machadiano tem relações com a forma histórica ? Como não perceber as similaridades, as homologias, o diálogo intenso com a época ? Não há, isso é evidente, uma relação de determinação direta da economia, da visão de classe ou da filosofia do autor. (Por falar nisso, há múltiplos determinismos, não só o econômico. Alguns tentaram determinar a obra pela filosofia do autor e até pela biografia dele. Lucia Miguel Pereira, Afranio Coutinho e Miguel Reale conseguiram achar uma "filosofia de Machado de Assis", sem perceber o movimento do próprio texto que geralmente destrói essas sabedorias de almanaque e tiradas filosofantes de Brás Cubas, Quincas Borba, Bento Santiago ou Aires). Não há mimese sem construção. Machado não só representa, mas representa construindo: a obra é como um prisma, cuja luz histórica, já formada, é refratada e transformada pela forma literária interna. Machado não representa ou espelha "objetivamente" conteúdos externos (nesse sentido ele não é um realista), mas apresenta-lhes numa certa lógica interna, cheia de tensões e cambalhotas. Como não perceber que a obra machadiana é a apresentação conseqüente das contradições sociais específicas do capitalismo periférico ? A melhor obra, como diz Adorno, é aquela que consegue apresentar as contradições, sem harmonizá-las numa unidade imaginária. De modo que, às vezes, a boa obra é a que fracassa, a que é desarmônica, dissonante, cheia de problemas de coesão, cheia de cacos pontiagudos, de esquisitices etc. Há muita coisa esquisita, extemporânea, no Brás Cubas ou em Esaú e Jacob. Só uma visada realmente dialética pode perceber nuances formais como essas.
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Recapitulando: o conteúdo a ser formado pelo artista é ele mesmo algo já formado, tem sentido em si, é um conjunto de "estruturas de sentido" - e não algo que é simplesmente imposto pelo artista, com a mão de gênio. O artista nem por isso é menos criador, já que essas estruturas de sentido ele não só as mimetiza e representa, mas as constrói ou reconstrói num todo formal absolutamente novo. Entre mimese e construção há continuidade e ruptura. Não há reducionismo algum nessa síntese dialética de ambas.
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Ou ainda: a forma estética para Adorno e cia. materialista não é nunca mera contingência - mas tem relação com estruturas de sentido socialmente dadas, sempre em processo. E por isso mesmo a forma não é algo totalmente imposto pela subjetividade do autor. O que destrói o mito do gênio. O grande autor é um construtor de Obras certamente, mas não o é criando formas quaisquer ex-nihilo, sem base num material pré-formado, que impõe necessariamente processos de mimese, que trazem a forma do que "em si", como material, como pressuposição de conteúdo interno, tornar-se-á a unidade de forma/conteúdo na obra terminada. Não há construção sem mimese, nem mimese sem construção.
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A originalidade de Antonio Candido surge um pouco também daí: não precisa arrotar suas manobras metodológicas, sejam estruturalistas, sejam dialético-marxistas. Princípios teóricos não garantem por si só um bom resultado analítico. (Essa era a lição de Adorno ou Benjamin). Sua originalidade, como bom materialista, é a concentração máxima no objeto, para daí refazer as teias do texto com a sociedade e a história, passando pelo diálogo "intertextual" com Zola e o naturalismo da época. Antonio Candido faz, assim, uma análise formal imanente (a sociologia serve, tal qual a intertextualidade, para caracterizar não só o conteúdo mas a forma interna do texto, e não para fazer discursos estrangeiros a ele, como se costuma dizer de Schwarz e Candido), e frise-se aqui: uma análise formal não formalista. Assim, não é preciso necessariamente trabalhar com "funções" e "operadores" supostamente invariantes de qualquer texto, como a análise estruturalista propõe. Basta uma boa análise imanente, a concentração no próprio objeto, com todas as suas mediações sócio-simbólicas. A adequação nacional, no caso também, é essa independência em relação às modas teóricas francesas e americanas. Daí o sentido político dessa análise, que, em geral, é simplesmente perdido nas estruturalices.
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"Assim, a unidade do livro [O cortiço] — um fato interno, de construção e estrutura — apresenta também uma face mimética — um fato da ordem dareferência externa, ficando unidos aspectos que as teorizações recentes não costumam considerar em conjunto." (Schwarz, Adequação nacional e originalidade crítica in: "Seqüências Brasileiras").
A chave da compreensão desse trecho, talvez, quem nos dá é o Adorno na Teoria Estética: um obra torna-se (às vezes, nem sempre!) mais mimética (apresenta a realidade em movimento e torna-se mais verossímil e mais expressiva) quanto mais ela avança dialeticamente no pólo oposto, isto é, quanto mais ela é composta, estruturada, construída. Os advogados da pura construção, estruturalistas e pós-estruturalistas como Barthes ou Sant´Anna irão denegrir a mimese, como se ela fosse o simples espelho de um real objetivo, que não existe. O que Schwarz nos diz é que a forma interna sempre é construída sobre uma forma preexistente, que é a forma da realidade. A composição do romance é essa síntese das duas formas. O pressuposto aqui é assumir que o material utilizado na obra nunca é puro material caótico, ao contrário, ele mesmo já é formado e determina a forma interna do romance. Daí a "melhor" construção formal de uma obra particular ser aquela que mais mimetiza a forma ontológica do ser social universal, sem prejuízo da originalidade, da fantasia, da criatividade do artista e produtividade singular do texto. Adorno chama essa mediação entre mimese e construção de "fantasia exata" ("Leitura de Balzac" in Noten zur Literatur).
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Segundo Adorno, a mimese não se restringe a ser cópia da "natureza real", do mundo empírico e exterior à obra. Ela é algo muito extenso na experiência, e diz respeito tanto a uma atividade de adaptação do homem ao mundo, a um procedimento de expressão corporal, e, no interior da obra, pode representar estruturas reais ou fictícias (literárias, musicais etc.). Pode-se também, ainda, mimetizar um estilo literário alheio. Quando Machado de Assis toma Lawrence Sterne ou Luciano de Samósata como "modelos" para a prosa de Brás Cubas, ele está imitando um outro texto, que tem relações de semelhança e proximidade com as estruturas objetivas e subjetivas do seu país. A mimese é tomada no amplo sentido, portanto. Ao lado disso, há toda uma construção lógica, formal propriamente dita, que é o momento da poiésis, da invenção, do artifício literário. Agora, deve-se perguntar: por que Luciano, a sátira menipéia, Sterne etc. e não outro modelo (a forma romântica ou realista clássica, stendhaliana e balzaquiana p.ex.) ? Por que essa forma que "mescla estilos" sob a égide do humor - a forma satírica e mesmo grotesca do humour machadiano - diz mais, expressa mais, apresenta mais alguns problemas centrais que outras ? Porque tais formas construídas permitem apresentar mimeticamente as virtualidades de nosso processo social estruturalmente cindido entre escravidão e liberalismo, dominação direta e indireta (via capital), lógica do favor e do mercado universal. E não é preciso derivar intertextualmente todo Machado só dessa tradição sterniana. Na realidade, as estruturas brasileiras são tão poderosas que, mesmo plasmadas noutro conjunto de formas literárias, elas continuam dando sinal: veja-se por exemplo o "mundo misturado" de Guimarães Rosa, em que as personagens são tão "volúveis" e "misturadas" quanto as de Machado.
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Schwarz concede sim bastante espaço para o diálogo intertextual (que é mimese literária tal qual outras formas) ! Leia o capítulo sobre a Acumulação literária no "Um Mestre... !"Schwarz foi o primeiro talvez a mostrar como Machado deve muito à tradição literária brasileira, para além do modelo europeu realista, atando pontas lá onde outros simplesmente cortavam: Machado volta a José de Alencar (Eugênia / a Pata da Gazela p.ex.), a Macedo, ao clima satírico da crônica, do folhetim, do teatro de Inglês de Souza, Martins Penna etc. ... e também a Sterne, a Pascal, Shakespeare, Schopenhauer e a filosofia do inconsciente, o positivismo, o social-darwinismo etc. E ainda mostra o quanto isso foi apropriado de forma crítica, irreverente, já que Machado de Assis foi um "deturpador de textos" (Raymundo Magalhães). E para quem diz que Schwarz não atenta para a psicanálise: seria fácil mostrar como ele, num argumento finamente cerrado, expõe toda a lógica do desejo de Brás Cubas, que é perversa em essência, sem ter de ficar citando Freud ou Lacan para isso. Agora, é claro que ele não esgotou toda a interpretação possível. Isso seria demais. Mas Schwarz é um crítico completíssimo: faz leitura imanente, puxando os fios formais-narrativos, sociológicos, históricos, econômicos, psicanalíticos, filosóficos etc.
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Acho que o texto schwarziano sobre Dom Casmurro é apenas um ensaio - diferente da análise do Memórias Póstumas de Brás Cubas, que é um livro completo. Naquele texto ele se interessa, a partir de Caldwell, Gledson e outros, em mostrar como Machado construiu novamente um narrador capcioso - e o que isso tem a ver, novamente, com a estrutura social do país - lá onde outros lêem a Forma como uma invenção/construção puramente estética, sem nenhum traço mimético de raíz profunda. A partir dessa constatação a análise formal, mesmo nos limites desse ensaio, se eleva a um patamar de consciência superior: constatando-se essa ironia machadiana de base, que sempre está dizendo o outro do que aparentemente diz ou faz, não se pode levar a sério uma análise do trágico em DC, como se esse fosse um texto realmente "trágico". Não, é fundamentalmente um texto alegórico ou irônico, um discurso envenenado, que emula o Otelo de Shakespeare (e muitas coisas mais), mas que tem outro sentido que o trágico, e passa a ser sátira da classe dominante brasileira. Lido desse jeito, perde-se a ingenuidade da análise formal clássica.Quanto a Rosa e outros: acho possível mostrar como várias personagens da literatura brasileira passam e repassam por posições a esmo, estão em constante metamorfose, relativizando tudo em sua volta, ao mesmo tempo que em busca de alguma idéia fixa (um absoluto), sem nunca se decidir e se formar uma verdadeira identidade - ou seja, a volubilidade não é característica que emerge só em Machado (Rubião, Palha, Sofia, Flora, etc.) mas vem de longe (os "malandros" entre a ordem e desordem do Memórias de um sargento de milícias ou em "Tony Roy" de João Antônio; a Aurélia de Senhora do Alencar, o Macunaíma, a paixão pelo amorfo em G.H.). Entre esses seres volúveis Riobaldo: desde Candido e Walnice N.Galvão se sabe como ele é um ser ambíguo, passa de um bando a outro, tanto quanto Zé Bebelo, Hermógenes ou sua mulher. Ou ainda: Diadorim: homem-mulher, donzela guerreira, com ódio de morte e ternura...
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Os formalistas dirão: se há essa metamorfose ambulante das personagens, isso não passa de um simples jogo estético, no plano das formas puras, inventadas arbitrariamente por escritores brasileiros nefelibatas. E essa coincidência não existe, no fundo, ou também é arbitrária, é a "sua visão", ou cada forma é uma forma singular, há mais diferença entre Riobaldo e Brás Cubas que semelhanças etc. etc.De um ponto de vista materialista a mimese literária conta de modo muito mais radical. Claro que há diferenças, elas contam e muito. Mas há semelhanças objetivas, de um ponto de vista comparativo internacional, e que têm raiz profunda na sociabilidade periférica, em estruturas sociais muito amplas e resistentes, em nosso caso, em última instância na cultura brasileira, fundada na relação de dominação brutal entre senhor-escravo-depedentes e o movimento de acumulação periférico, variando entre o contrato formal e universal dos direitos e a arbitrariedade oligárquica local, o sujeito moderno monológico, solitário, individual e a pessoa porosa, fundida e agregada aos clãs do poder local, a temporalidade urbana do capital e a espacialidade dos domínios rurais, a moral de senhores e a astúcia e expedientes de sobrevivência de escravos e dependentes, etc. E mais, ainda: a periferia inteira do sistema capitalista parece girar em torno desse regime de formas volúveis de subjetividade e modos de ser social instáveis. Schwarz aponta algo de semelhante nos russos (Dostoievski, Gogol etc.). Eis um programa de estudos materialista em literatura que não é só jogo.
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Essa volubilidade foi constatada por muitos comentadores atuais; ...numa tese de doutorado sobre Rosa (Danielle Corpas, O JAGUNÇO SOMOS NÓS -VISÕES DO BRASIL NA CRÍTICA DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS) diz-se:
"Trata-se de um aspecto da composição da obra e da visão de mundo do narrador-protagonista que tem sido sublinhado, com freqüência e de maneiras bem diversas, ao longo da fortuna crítica desse texto ondetudo o que é pode deixar de ser, tudo o que não é pode vir a ser, os contrários se sobrepõem, os limites entre uma coisa e outra são muito tênues, às vezes apagados. (...) Antonio Candido fala em “reversibilidade”, Walnice Nogueira Galvão, em “ambigüidade”, José Antônio Pasta Jr., em “hibridismo”. Além disso, variam também as explicações que procuram elucidar a razão de ser dessa lógica a partir do reconhecimento da função estrutural que ela tem no romance."http://www.letras.ufrj.br/ciencialit/trabalhos/daniellecorpas_jagunco.pdf
Nietzsche: entre a gravidade do Trágico e a leveza do Cômico

Cláudio R. Duarte

Nietzsche é modulado pela passagem constante do Trágico ao Cômico: pelo espírito grave vivendo e glosando situações terríveis (o destino da cultura, a impotência social dos "fortes") ao espírito leve do cômico; ou ainda, do espírito martelador e impassível, duro consigo e com outros (de onde se retira vários dos temas aristocráticos: pathos de distância, hierarquização, anticompaixão etc.), ao espírito da ironia fina, do ceticismo, da dança e da música. O humor é um recurso constante de Nietzsche, principalmente no período que leva de A Gaia Ciência à última fase, apesar de que também é o momento em que ele endurece ainda mais, entrando na fase nomeada do "Grande Não" leonino. Se desenvolvermos esse esquema ele talvez nos leve a um tema fundamental mas pouco conhecido de Nietzsche: o do questionamento da vontade de verdade e dos limites da vontade de domínio nobre ou escrava. Com o que o mais alto grau da potência é alcançada artisticamente, na criação e doação de sentido, ou naquilo que Deleuze nomeu a "potência do falso" como criadora de "mundos". E aí Nietzsche parece-me que avança do trágico ao IRÔNICO E AO CÔMICO. Por isso me lembra outro grande psicólogo, só que nosso conterrâneo: Machado de Assis. O "homem revoltado" de Nietzsche é, nos melhores momentos, muito mais o cético ironista e o "bufão", como ele diz em Ecce Homo, do que o Aristocrata aguerrido, impassível e cruel consigo e com os outros. Daí o quixotismo involuntário dessa filosofia, num mundo nobre socialmente em decadência, resta o humor e a potência da máscara para transfigurar uma situação trágica de mudança e perda de horizontes.
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Vamos exemplificar e problematizar um pouco isso tudo que disse, com um aforisma pouco lembrado: Origem do Cõmico, em Humano Demasiado Humano § 169:"Quando se considera que por centenas de milhares de anos o homem foi um animal extremamente sujeito ao temor, e que qualquer coisa repentina ou inesperada o fazia preparar-se para a luta, e talvez para a morte, e que mesmo depois, nas relações sociais, toda a segurança repousava sobre o esperado, sobre o tradicional no pensar e no agir, então não deve nos surpreender que, diante de tudo o que seja repentino e inesperado em palavras e ação, quando sobrevém sem perigo ou dano, o homem se desafogue e passe ao oposto do temor: o ser encolhido e trêmulo de medo se ergue e se expande - o homem ri. A isso, a essa passagem da angústia momentânea à alegria efêmera, chamamos de cômico. No fenômeno do trágico, por outro lado, o homem passa rapidamente de uma grande e duradoura alegria para um grande medo; mas, como entre os mortais essa grande e duradoura alegria é muito mais rara que as ocasiões de angústia, há no mundo muito mais comicidade do que tragédia. rimos com muito mais freqüência do que ficamos abalados."
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Olá, boa observação Karina. Creio que no Nascimento da Tragédia, Nietzsche ainda se lamenta da perda do mítico e do trágico com Eurípides e o triunfo do "homem teórico" socrático e democrático - mas ainda podia sonhar com um Renascimento do trágico no Espírito da Música de Wagner (e com as correspondências materiais, pouco observadas pelos idealistas, de um Estado Prussiano que se armava até os dentes). Em lugar da tragédia, vinha a "nova comédia ática" (NT §11), e com ela, a entrada do público no palco, "o instante, o chiste, a irreflexão", "a dialética otimista", a chegada da mentalidade do escravo ao poder (ibid.). O que ele vê como uma perda, um grande dano. Vê, p.ex., com maus olhos o triunfo dos "sardônicos Lucianos da Antigüidade" (NT, §10) - referindo-se a Luciano de Samósata e à tradição da sátira menipéia, muito apreciada, aliás, por Machado de Assis (que usou tal tradição, que tem relação com o caráter carnavalesco segundo Bakhtin!, no Memórias Póstumas de Brás Cubas!). O que mudou então ? Com o passar do tempo, creio que o nobre Nietzsche foi se deparando cada vez mais - como um novo Quixote em tempos modernos - com a inevitabilidade do universo burguês, secularizado e democrático, mas sem o sumiço de seu caráter de luta e violência (Humano demasiado Humano p.ex., §441 e 443, para citar alguns pequenos exemplos laterias). Assim, não pode assumir a dialética otimista, mas também não pode deixar de atinar que o caminho do niilismo e da perda de todas as autoridades e hierarquias antigas já não tem volta e tudo isso vira fantasia carnavalesca (ABM 223). Daí a apologia da máscara. Não é daí que surgiram, por exemplo, vários de seus temas futuros, como aqueles relacionados à crítica do "espírito de gravidade", a crítica da "vontade de verdade" e a necessidade do "esquecimento ativo" do passado? E assim Nietzsche consegue a meu ver, nesses momentos em que afirma a ironia e o cômico (que tem relações com Sócrates, aliás), realmente abrir uma brecha em seu projeto aristocrático para algo além.
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Da crítica do espírito de peso no Zaratustra
Em "Do espírito de gravidade (ou de peso), §1", o Zaratustra diz-nos:"Minha linguagem é a do povo: de modo por demais grosseiro e sincero falo eu, para o gosto dos delicados. E mais estranha ainda soa minha palavra aos ouvidos de todos os plumitivos e escrevinhadores"Estranho ou não ? Não, se considerarmos que ele está reatando aqui com as raízes populares do cômico, há muito soterradas. E na seqüência:"Somente o homem é um pesado fardo para si mesmo ! E isso procede de que carrega às costas demasiadas coisas estranhas. Tal como o camelo, ajoelha-se logo e deixa que o carreguem bem. // Especialmente o HOMEM FORTE, com espírito de suportação, ao qual inere o respeito: de demasiadas palavras e valores estranhos e pesados carrega ele mesmo suas costas - e, então, a vida parece-lhe um deserto!"(...) Em verdade, também não gosto daqueles para os quais todas as coisas são boas e este é o melhor dos mundos. A esses chamo onisatisfeitos. (...)Infelizes chamo todos aqueles que têm somente uma escolha: tornar-se animais maus ou malvados domadores de animais; não construiria no meio deles uma choupana para mim // Infelizes chamo, ainda, os que devem sempre esperar - esses repugnam ao meu gosto: todos esses aduaneiros e merceeiros e reis e demais guardiães de países e lojas" (§ 2).Estranhos trechos, novamente, se considerarmos que o "homem forte" diria "sim" a tudo, e seria algo próximo ao animal feroz ou ao domador de animais. Ou ainda, essa crítica do rei e dos militares (na mesma esteira: Das Novas e velhas tábuas, §12), quase sempre elogiados por N. Mas aí não é justamente uma crítica autoreflexiva da nobreza que está aflorando? É por isso, talvez, que é só no Zaratustra que encontramos uma clara crítica de valores nobres (e não só dos escravos), com um esboço de transvaloração dos valores aristocráticos. Coisa que acho que não se repetiria mais, mesmo na comicidade de Além de Bem e Mal (cujo capítulo sobre "O que é nobre?" é, malgré lui, uma afirmação de um grande espírito de peso).
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De onde vem o humor e a ironia em Nietzsche ?
O que o Edivan sugere é que os tipos nobre e escravo são tipos-ideais. Pode ser. Em todo caso, os intérpretes de Weber/Simmel vêem em N. a fonte desses tipos ideais da escola alemã de sociologia, embora as fontes fundamentais talvez sejam principalmente Kant e Dilthey. Agora, Dioniso é o deus trágico e da alegria, segundo o Leandro, o que já resolveria toda a questão, de saída, já no Nascimento da Tragédia. Não creio. Pois aí é que acho que entramos num problema complicado (que abordei no outro tópico, chamado Nietzsche com/contra a religião). No NT (§ 10 e 11) ele vê, com Ésquilo/nova comédia ateniense, o fim daquele sentimento de "gravidade" e peso das situações, que as tragédias de Sófocles e Ésquilo instauram. Não basta, assim, voltar ao dionisismo, nem à tragédia. Acho que foi preciso também tresvalorá-los, ou filtrá-los, e, sobretudo reconstrui-los. Jean Pierre Vernant considera o dionisismo nietzscheano uma invenção, sem grandes relações com a religião dionisíaca efetiva, constatável nos documentos históricos (religião típica de mulheres e escravos, p.ex.). O conceito de dionisismo é muito mais um tipo conceitual que um tipo histórico-concreto.Muitas tragédias áticas geralmente têm desfecho otimista, segundo Alban Lesky (A tragédia grega). Por que o otimismo? Talvez porque restabelecem a ordem social hierárquica de sempre - nobres, mulheres, crianças, escravos, mercadores e estrangeiros - o dionisismo, como expressão da violência coletiva e a morte de um bode expiatório - se há algo dele na tragédia - está sempre a favor da Ordem. Há algo disso em Nietzsche, claro, que adoraria restabelecer uma hierarquia natural dos seres segundo sua potência.Ora, se há realmente essa tresvaloração dos valores nobres em Nietzsche, se há superação do espírito de gravidade, parece-me haver também uma ultrapassagem do dionisismo antigo, embora Nietzsche não deixe isso aparecer tão claro. Só por isso, também, os "homens superiores" são ponte: só a nova nobreza a ser produzida está realmente além-do-homem.
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(discussões de orkut- maio/2008)